Ética e estética na hora H
Fernando Monteiro responde com um poema contundente à virulência da ditadura, do fascismo e da tortura, no passado e no presente.
Em conversas de filosofia juvenil, aí pelos idos 1960 e tantos, certas indagações esquentavam o juízo meu e de uns bons camaradas, entre os quais recordo Paulo Sá, Rui Lira, Gianni Mastroianni, Chico Lins, Carlos Bezerra, Jovenildo Pinheiro. Arte engajada x arte pela arte, ética x estética, esmola x revolução, teoria x prática e outras dicotomias eram temas recorrentes. Não conhecíamos então Theodor Adorno e suas célebres palavras:
Mesmo a mais extremada consciência do perigo corre o risco de
degenerar em conversa banal. A crítica cultural encontra-se diante do último
estádio da dialética de cultura e barbárie: escrever poesia depois de Auschwitz
é um ato bárbaro, e isto corrói até o conhecimento da razão pela qual hoje
se tornou impossível escrever poesia. (…) A inteligência crítica não é capaz de
enfrentar este desafio enquanto se confinar a si própria numa contemplação
autossuficiente. (1949)
Antes de Adorno, Carlos Drummond já proclamava (e disso sabíamos), no poema “O sobrevivente” (1930): “Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade”. Denunciava a coisificação do ser humano, usando a poesia e por isso, podia dizer ao final: “(Desconfio que escrevi um poema.)”
Tudo isso — as inquietações juvenis, o alerta drummondiano e o pensamento germanicamente profundo e emaranhado do filósofo de Frankfurt — tudo isso veio à tona de chofre ao ler o poema longo Os vivos (?) e os mortos, de Fernando Monteiro. Nele, o poeta recifense responde (explicitamente) ao pensador alemão, num poema-denúncia de uma contundência tremenda. Confrontado com a terrível antítese que estamos vivendo — cultura x barbárie –, Fernando arrisca-se em abrir mão de seu refinamento estético em favor de uma ética cujo nome atual é indignação. Seria um panfleto, não fosse um artefato dialeticamente ético e estético. Num verso, ele chega a afirmar “Isto não é um poema”, para se desmentir no conjunto do texto, de forma dialética.
Abordando o tema indigesto da existência da Casa da Morte, famoso (e pouco abordado literariamente) centro de tortura e morte durante a ditadura militar de 1964, Fernando expõe a chaga de uma política de estado e faz a necessária conexão com a realidade atual, onde um candidato a ditador, com apoio da nata do Exército, caminha resolutamente em seu objetivo de destroçar a democracia, a cultura, a civilização, na entronização de um regime fascista construído de dentro do nosso precário sistema democrático-eleitoral. Trazendo o tema dolorosamente para nosso lugar — ao citar o assassinato precedido de tortura do PPP — Padre, Preto e Pobre Antônio Henrique Pereira Neto, auxiliar de dom Hélder Câmara, em 1969 — Fernando nos interroga sobre o que estamos fazendo diante da escalada fascista. E finaliza mostrando como a poesia é possível — e necessária –, pois:
Poesia ainda supera fornos
e pode romper o jogo
dentro do logro
de jovens distraídos
pela dança do Ogro
& filhotes…
Fernando Monteiro responde a Adorno e atualiza Drummond (concretizando no aqui & agora a situação abstrata de “O sobrevivente”) com uma força e uma coragem sem paralelo nos momentos que estamos vivendo. E mais não digo porque estou assoberbado num trabalho, porque me faltam saberes e porque ainda estou sob o impacto da leitura.