Wilma e seu sonho erótico
Ela era casada, fiel, acima de qualquer suspeita. E sonhou que era estuprada por um padre, como num romance de Erica Jong.
Wilma Gastão Podiewska tinha cabelos e olhos claros e uma silhueta calipígia de mulata. Que mistura! Mas era casada. Solidamente bem casada. Era fiel à instituição do matrimônio: morreu aos 49 anos, no auge do vigor físico e mental, tendo como marido e único homem que conhecera biblicamente o namorado de infância. Ambos de boa família.
Os modos de Wilma contrastavam com essa biografia de recato real. Os gestos vivos, o olhar de abismos, a voz enfática na seriedade e na gaiatice. Ela não andava, deslizava, e sua gargalhada era de cristal. Transpirava inteligência e desassossego. Muita gente fazia mau juízo dela e sei de dois ou três marmanjos, sedutores diplomados, que quebraram a cara com ela. Como ela conciliava uma alma evidentemente larga com uma vida estreita? Mistério.
Porém, como o mistério é apenas a fase anterior ao conhecimento, um dia ouvi umas palavras aladas saídas da boca de Wilma. Foi durante um almoço patriarcal, na casa do pai dela, renomado cirurgião cardíaco. Havia casais jovens e maduros. O ambiente era familiar, basicamente conservador, mas nada reacionário. Como de hábito, antes de comer, espalhavam-se pequenos grupos mistos, bebericando, traçando uns petiscos e conversando. Após o almoço, os comensais se dividiam em dois grandes grupos. O dos homens, na varanda, fumando e conversando sobre mulheres, carros e dinheiro, talvez na ordem inversa. No amplo salão, ficava a roda das mulheres, onde os papos eram muito mais diversificados: filhos, moda, beleza, fofocas, livros, filmes, viagens, homens, confissões pela metade, anedotas picantes com termos metafóricos. (Hoje as metáforas foram abandonadas nas conversas femininas, mas há umas décadas era assim, pelo menos naquele meio refinado. Creio que as mais jovens mediam as palavras, porém em função das mais idosas — mães, sogras, tias e amigas.)
Claro que a roda da mulherada era muito mais divertida. Infiltrei-me nela. No começo (os almoços aconteciam uma vez por mês na casa do pai de Wilma) elas ficaram desconfiadas, mediam mais as palavras, me olhavam como um intruso. Mas a minha deliberada postura de ouvir em silêncio, aquiescendo sempre com um sorriso idiota ou um leve mover de cabeça, mais duas ou três doses acima, fizeram-nas me aceitar, quase como aceitam os amigos homossexuais com quem as mulheres casadas formam sempre uma parceria bem peculiar (todas ali eram casadas), de confidência e disputas. Claro que no círculo masculino minha reputação devia sofrer algum abalo pela minha mania de preferir a companhia das mulheres.
Um dia, Wilma contou um sonho. Com sua graça e leveza características narrou uma historinha cheia de nuances em que, ao fim de algumas peripécias, ela era estuprada por um padre diante do altar. Não havia qualquer intenção visível de chocar e assim a narrativa foi recebida por todas, com pequenas pilhérias como comentários. Logo mudaram de assunto. Na saída, comentei com minha mulher, amiga dela de longa data. “É capaz de ser invenção de Wilma. Ela é séria, mas chegada a uma gaiatice” — foi me explicado didaticamente.
De qualquer forma, a cena ficou gravada em minha cabeça e voltei a comentá-la, dessa vez com uma amiga diferente daquela turma: divorciada, viajada, independente, com muitas horas de alcova tripuladas por parceiros diferentes. Ela ouviu o fato e seu contexto e sentenciou, com a certeza de uma PhD em Freud, Jung, Lacan et caterva: “Ela, como uma mulher ajustada às convenções e sendo inteligente e sensível, tem uma vida paralela, fictícia, de liberdade e luxúria. Ela sente desejos por outros homens, mas, para não se sentir culpada, sonha que é forçada, estuprada. Assim, goza sem culpa. Garanto que, se ela sonhou realmente com esse padre, acordou molhadinha. Talvez tenha se masturbado.”
Bom, o mistério foi desfeito com essa aula de psicanálise instintiva.
Lembrei novamente do episódio, anos depois, ao ler Medo de voar, o notável romance de Erica Jong. Fiquei com a impressão de que o ponto de vista central do livro é o de que uma mulher, para ser feliz e realizada, tem de ter dois homens: Apolo e Dioniso, o primeiro, o marido meio burguês, bem estabelecido, confiante e tranquilo, um porto seguro onde ela se sente protegida de toda tempestade, e o segundo, um amante meio louco, selvagem e desapegado, capaz de satisfazer todas as suas ânsias e fantasias. Esse seria o padre do sonho de minha amiga. O amante que Wilma não tinha coragem de arranjar era o padre priápico da sua fantasia noturna. Um desperdício, diz meu lado B, o de amante presuntivo e malogrado, enquanto o lado A, de marido cabreiro, balança a cabeça em negação.
Por coincidência, Wilma era muito parecida fisicamente com a escritora americana, sendo mais bonita.