Vidas futuras

Foi-me demandado um argumento para uma sequência do filme Vidas passadas, indicado ao Oscar para Melhor Filme e Roteiro Original e por mim resenhado há uma semana.

BLOGUE DE HOMERO FONSECA
5 min readFeb 17, 2024

Chega tomei um susto quando abri o e-mail. Era de uma certa Pamela Wong, ligada à A24, produtora do filme de estreia de Celine Song. Depois de informar que soubera da minha existência por uma produtora brasileira residente na Califórnia — filha de um amigo meu — que leu minha a resenha de Vidas passadas, traduziu para o inglês e mandou para ela, Pamela. E muito impregnada da mentalidade ianque, a moça foi direto ao assunto: eu toparia escrever o argumento de uma continuação do aclamado filme?

Claro, achei que era trote. Mas confirmei com meu amigo a história da filha dele e dei uma pesquisada em sites especializados em cinema na internet. A mensagem era autêntica. Não preciso dizer como me senti. Me tranquei por 72 horas em casa e, antes que a sorte grande escapasse das minhas mãos, esbocei o texto a seguir:

VIDAS FUTURAS — Argumento de Homero Fonseca.

1ª Parte: A curto prazo

O filme começa repetindo, compactada, a cena impactante do trecho final de Vidas passadas, em que os três protagonistas conversam num balcão de um bar, incluindo o movimento de câmera em que, lentamente, Arthur vai saindo de cena, ficando apenas Nora e Hae Sung conversando de forma cálida e envolvente. Com a diferença de que não se ouve o que eles falam, apenas uma discreta música de fundo. Ou seja, é a perspectiva de Arthur, excluído do ménage a trois platônico, pois não entende uma palavra do diálogo, já que ele rola em coreano.

Funde para o dia-a-dia de Nora e Arthur em Nova Iorque, depois que Hae Sung volta arrasado para Seul. Arthur não sabia o conteúdo daquela conversa, mas entendera o choro de Nora após deixar Hae Sung no táxi e voltar para casa: havia ali uma dolorosa nostalgia do que poderia ter sido…

Apaixonado pela esposa, de mente liberal e compreensivo até umas horas, o escritor judeu espera que Nora conte o que diabo ela e o antigo namorado de adolescência tanto conversaram naquela fatídica noite. E nada. Nora não se sente obrigada a contar nada; considera aquele um momento dela, intransferível, do qual não tem a menor necessidade, nem o dever, de compartilhar com o homem. Arthur vai se tornando ressentido.

Tudo isso é mostrado em cenas triviais, nas quais o casal começa a se desentender. Encucado, Arthur aguarda, noite após noite uma confissão da mulher. Insone, fixa os olhos no teto e se volta ao menor movimento de Nora na cama. Uma vez, quando ela já parecera pegar no sono, volta-se para ele de repente e chama seu nome. Ele pensa: é agora! Ela pergunta o que ele acha de o editor ainda não ter dado nenhuma resposta, desde que ela lhe enviou os originais de seu novo romance.

Arthur se descontrói. De olheiras, barba por fazer, entra em bloqueio criativo. Só se interessa no curso intensivo de coreano, para poder imaginar o diálogo entre Nora e Hae, na língua que ele não entendera. Está enlouquecendo. Tem um acesso de ciúme por motivo banal, quebra coisas, agride a mulher com um tapa no rosto. A relação está irremediavelmente trincada. O casal se separa.

2ª Parte: A médio prazo.

Nora continua morando em Nova Iorque, sozinha. Cuida de sua vida profissional. Seu livro está fazendo relativo sucesso e ela faz algumas viagens pelos EUA para participar dos lançamentos. É mostrada em várias cenas com amigas e amigos novos e antigos. Num desses eventos, é paquerada por um livreiro charmoso, termina na cama com ele. Mas fica por isso mesmo, não passou de uma transa casual. Algumas outras poucas cenas dessa se repetem. Mas Nora não está a fim de um relacionamento sério.

De repente, bate um vazio em sua alma. Angústia sem motivo, insônia, crises de pânicos. Vemos, em médio plano, ela a teclar no computador, ora desalentada, ora contente.

Corta. Ela está num avião, em pleno voo para a Coréia. Inverte-se a situação do primeiro filme. Hae Sung trabalha como engenheiro numa empresa de construção, está casado e tem um filho pequeno. Ele vai espera-la no aeroporto. Começam a se encontrar, rever os lugares da infância. Vemos fusões entre cenas em que ela e Hae, adolescentes, frequentam aqueles parques etc., com cenas do presente, eles adultos, repetindo as mesmas marcações.

Hae Sung deixa esposa e filho e vai morar com Nora. Então, vivem o amor tórrido impedido pelas voltas do destino e pelas escolhas da protagonista. A câmera, a música, o ritmo, tudo mostra uma urgência, a necessidade de se darem o que não tiveram antes.

O agora amante, em conversas esparsas, vai contando a Nora o andamento do processo de divórcio, dentro dos trâmites coreanos. Ela não se interessa, mas ele não percebe isso ou força-se a não perceber. Divorciado, Hae começa a falar em se casarem formalmente. Nora, que vivera maritalmente com Arthur, não considera importante formalizar a relação. As diferenças de valores entre eles vão se tornando cruciais. Ele “é bem coreano”, como ela o definira para Arthur. Ela, além dos atritos cada vez mais frequentes por esse desencontro psicológico, inquieta-se por se sentir uma estrangeira no país em que nascera e deixara quando tinha 12 anos. Ela tenta conversar com Hae, mas ele responde sempre com algum mantra do ethos coreano. A convivência fica difícil.

Quando vai pegar o filho na casa da ex, para passear, Hae tem flashbacks da vida de casado, onde faltava paixão, mas sobravam afeto, tranquilidade, ordem. Pergunta um dia à mãe do seu filho por que ela não casara de novo. Ela fala algo como “aqui na Coréia você sabe que essas coisas não são tão simples assim. O casamento ainda não é encarado como algo descartável”. Faz uma pausa, melancólica. E começa a dizer: “Além do mais…” Ele aguarda ansioso.

3ª Parte: Depois, quem sabe?

Corta para Nora num avião voltando para os EUA. Não está alegre, nem está triste. Aos 40 e poucos anos, tudo nela revela uma mulher confiante. Na cadeira ao lado, uma mulher loira, um pouco mais velha, de elegância despojada, olha rapidamente para ela. A aeromoça aproxima-se, pergunta se desejam um drinque. As duas leem o cardápio e fazem o mesmo pedido. A aeromoça sorri. Ela e a vizinha de acento se entreolham e riem.

– Meu nome é Nora.

– O meu é Hilda.

F I M

AVISO DE FAKE NEWS: ESTE É UM TEXTO DE FICÇÃO. TALVEZ UM CONTO.

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Written by BLOGUE DE HOMERO FONSECA

Jornalista e escritor. Só sei que nada sei (Sócrates), mas desconfio de muita coisa (Riobaldo Tatarana).

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