Último desejo
Em meio a uma lucidez espantosa, a nonagenária tem uns episódios pontuais de pequenos lapsos e ideias extravagantes.
Às vésperas de completar 100 voltas ao redor do Sol, dona Dondon, depois de um cochilo na cadeira de balanço na calçada de casa, numa tarde abrasiva deste começo de verão, fez uma confissão em voz alta:
— Eu nunca vi um negro nu.
As vizinhas da Vila do Ipsep se riram.
Viúva há mais de 40 anos, de vez em quando ela emergia das brumas da memória com as tiradas mais inesperadas. Um dia perguntava se o finado já tinha tomado sua sopa. Noutro, queria comer araçá. Às vezes, falava no fim do mundo. Mas eram episódios pontuais em meio a uma lucidez renitente.
Ultimamente, porém, fixara-se naquela ideia, saída não se sabe de que camada obscura do inconsciente: queria porque queria saber como era um negro nu. (Seria racismo estrutural? A seu favor, diga-se: ela falava sem depreciar, como se se referisse a um esquimó ou um búlgaro).
Prestativa, a neta Jéssica fez uma pesquisa no Google. Caiu num saite pornográfico e se espantou com as visões superlativas. Alguém explicou: esses daí, negros ou brancos, não são o normal, são atrações de circo.
A filha Dida, mais cautelosa, vasculhou nas antropologias. Encontrou a foto acima. Quando mostrou à velha, ela não escondeu a decepção.
— O que foi, mamãe. Não gostou?
Dona Dondon deu um muxoxo:
— Mas é pintada!