Rico não vai ao cinema
A incrível noite em que um industrial foi ao Café Burle Marx e falou a um desconhecido estar comovido com filme sobre as agruras de uma proletária.
Acabo de assistir, com vasto atraso, ao filme Dançando no escuro, de Lars von Trier, com Björk como protagonista. Bela obra sobre as agruras de uma operária tcheca migrada para os EUA, às voltas com a pobreza, uma cegueira progressiva e um filho condenado à mesma doença. É também um libelo sobre a hipocrisia de crenças caras à sociedade americana.
E aí bateu uma lembrança inaudita. Uma #tbt, como se diz hoje.
Era 2000, no Recife, e eu estava no Café Burle Marx, na Praça de Casa Forte, point de boêmios, intelectuais e outros bichos, quando adentra ao recinto um personagem que eu conhecia pela imprensa: Édson Mororó Moura, dono das fábricas das baterias Moura.
Baita surpresa. Eu nunca flagrara alguém como ele naquele reduto.
Ele sentou à uma mesa vizinha à minha, na calçada, pediu alguma coisa para beber e se virou para mim:
— Venho do cinema. Acabo de assistir Dançando no escuro. Você já viu?
Boquiabri-me. Eu jamais vira, nem sequer tinha escutado alguém dizer que vira, um rico num cinema. Ricos não vão ao cinema porque, em primeiro lugar, têm pequenos cinemas em casa (telas de 98 polegadas, com QLED — diodo emissor de luz de pontos quânticos –, som surround, subwoofer, conexão com internet etc.).
Em segundo lugar, rico tem horror a fila, instituição democrática que nivela todo mundo (e rico faz tudo, tudo mesmo, para se distinguir da plebe) e desconhece privilégios (e rico não sabe viver sem seus privilégios).
O sr. Édson Mororó Moura, pra quem não sabe, fundou em 1957 uma fabriqueta de baterias de automóveis em Belo Jardim, no Agreste pernambucano, e se tornou o maior fabricante de acumuladores do mundo, fornecendo a gigantes como GM, Ford e Fiat.
Não lembro tudo que ele falou naquela noite há mais de 20 anos. Por azar, eu não havia assistido ao filme e não pude aprofundar a conversa com ele. Apenas ouvi, balançando a cabeça.
Agora, após conhecer o enredo da fita — as vicissitudes do proletariado — me espantei ainda mais com a cena insólita. Eu sabia, pelos seus artigos e entrevistas, que Édson Moura era uma figura um pouco excêntrica, de ideias originais, contraditório a ponto de se confessar saudoso da ditadura militar de 1964 e admirador do governador Miguel Arraes. Li numa matéria da Istoé, há tempos, que ele tinha no escritório uma foto de Joseph Stálin ao lado de Jesus Cristo.
Os ricos e os miseráveis têm algo em comum: são seres humanos anormais. A superabundância deforma o caráter das pessoas, ceifando qualquer traço de empatia. A escassez do essencial faz da vida dos sem-nada uma luta brutal pela sobrevivência, tolhendo sua própria humanidade.
Édson Moura falando com um desconhecido num café, extravasando a emoção despertada por aquele filme, ganhou para mim uma extraordinária dimensão humana.