Pobre de direita e esquerda alienada
Perplexidade e ironia sobre comportamento político do povo revelam desconexão entre classe média progressista e a massa ignara
Os operários, Tarsila do Amaral, 1933.
O abismo social brasileiro é tão grande que mesmo pessoas progressistas têm imensa dificuldade de entender o proletariado, o que ele pensa, como ele age. Isso é escancarado quando nas redes se espinafra, num misto de desalento e raiva, o chamado “pobre de direita”.
Historicamente, na raiz da escravidão e de uma cultura de privilégios, ao povo foram negadas educação e cidadania. A democracia formal, na monarquia e na república, sempre foi terreno das elites e contra-elites. O voto era exclusivo dos “homens de bens”. Pobres, mulheres e analfabetos somente lentamente e a muito custo foram se incorporando ao sistema (analfabetos só em 1988!).
Independência, Abolição, República, Revolução de 30 etc. tiveram escassa participação popular. Eleições e golpes de estado, regimes políticos e taxa cambial, esquerda e direita são assuntos de brancos, briga de cachorro grande. O povão, no dizer do historiador José Murilo de Carvalho (Os bestializados), fica de espectador ou, no máximo, figurante.
Diante da exclusão, a arraia miúda tenta sobreviver de forma pragmática. Já que não tem direitos de cidadania (participação nos partidos, nos poderes, nas instituições), resta agir pragmaticamente, aproveitando as brechas, como as eleições, para conseguir um emprego, uma cadeira de rodas, tijolos, telhas e dentaduras. Exigir um calçamentozinho aqui, uma drenagezinha ali. Quando perdeu a paciência e partiu pra briga — Palmares, Canudos, cabanada, greves selvagens, revolta da vacina — foi massacrado pelo Exército, com apoio vociferante da mídia. No Caldeirão (Ceará, anos 1930) aviões militares bombardearam populações civis (como em Guernica, mas Picasso não estava lá; Canudos, em termos de memória e denúncia, pelo menos teve Euclides da Cunha).
O discurso da classe média esclarecida, progressista, seja liberal ou de esquerda, condenando o “fisiologismo”, soa para a massa distante, incompreensível, como um concerto de música dodecafônica. E é uma marca de incompreensão: mede a dor alheia por sua régua.
Pobre não é patrimônio da esquerda. Pobre é, por artes das elites, desorientado politicamente. Pode pender pra esquerda ou pra direita. Esta, tem tarefa mais fácil: além de contar com a mídia, navega a favor da maré dos preconceitos, desinformação e ignorância em que a ralé vive afogada. Por isso (e outras coisitas), Bolsonaro foi eleito e continua bem avaliado. Fala a língua do povo para tirar os direitos do próprio povo. Quando nós dizemos “fiquem em casa” e o capitão diz “vão trabalhar”, quem tem razão na visão dos que dependem da ajuda emergencial para sobreviver?
A esquerda deve abandonar sua mentalidade classe média e tentar entender o povo (e, tarefa de longo prazo, convencê-lo). Trabalho duro, penoso, paciente. O resto é blá-blá-blá para aplacar nossa consciência confusa.