Pandemia ideológica

BLOGUE DE HOMERO FONSECA
3 min readSep 29, 2020

Velhinhos gente de bem queimando livros de Paulo Coelho é mais uma prova de que estamos vivendo uma pandemia ideológica gerada pelo vírus do fascismo.

Pirotecnia pipoca na internet. Motivo: as constantes críticas do escritor ao governo Bolsonaro.

Rola no twitter a cena de uma casal de idosos rasgando um livro de Paulo Coelho e queimando as folhas numa churrasqueira. O ato em si é fortemente simbólico. Remete imediatamente à prática das ditaduras de extrema direita de queimar livros — esse perigoso veículo propagador de ideias. (Não tenho registrado algo dessa natureza nas ditaduras de esquerda e se os houve isso é igualmente deplorável; fato é que fascistas e nazistas promoveram grandes fogueiras ritualísticas.)

Decodificando a cena: casal de idosos (evidente por si); gaúcho (sotaque); classe média (postura, ambiente); conservador (verbalização, incluindo invocação de valores “patrióticos”). A senhora diz que leu todos os livros do Paulo Coelho e aquele era o 10º que estava queimando.

O vídeo é feito por uma pessoa jovem (timbre da voz), possivelmente uma neta do casal (dirige-se à senhora duas vezes por “nona”) e os comentários reforçam a mensagem ideológica (“Por que ele não vai pra Cuba ou pra Venezuela?”). As falas dos três, alicerçadas nos jargões da direita raivosa, transbordam ódio, transgredindo até a compostura: a senhora tasca “Fia da puta”, “Canalha, petista comunista dos infernos”; o cidadão acrescenta “O Capeta tá te esperando no inferno” e a jovem arremata “Vagabundo”. O linguajar dos que acreditam no slogan “Brasil acima de todos, Deus acima de tudo” — ou seria o contrário?

Esse churrasco de livros — equivocadamente apontado, ao meu ver, pelo abalizado jornalista Leandro Demori, como “uma exposição covarde de um casal de idosos” — tem muito mais que uma “carga simbólica emocional”. Há intimidade, afeto e sobretudo comunhão de ideias entre a jovem que filma e os velhinhos. Não me parece existir a mínima sombra da intenção de “expor um casal de idosos à posteridade”. Há uma confraternização, uma comunhão, um compartilhamento, uma incitação à “Bücherverbrennung” — a queima de livros promovida pelos nazistas entre 10 de maio e 21 de junho de 1933, poucos meses depois da chegada ao poder de Adolf Hitler.

O assustador é que os personagens são velhinhos gente boa, patriotas, religiosos (referências ao Inferno e ao Capeta), a típica gente de bem. Parecem com alguém que vocês conhecem?

Ah, o motivo dessa pirotecnia: as críticas constantes do escritor ao governo Bolsonaro. O gatilho agora teria sido algum comentário a respeito do boicote aos produtos brasileiros propostos por algumas nações europeias por causa da devastação da Amazônia (que Paulo Coelho teria apoiado), que o general Heleno ameaçou retaliar.

--

--

BLOGUE DE HOMERO FONSECA

Jornalista e escritor. Só sei que nada sei (Sócrates), mas desconfio de muita coisa (Riobaldo Tatarana).