O melhor não-filme dos últimos tempos

Com um rigoroso minimalismo, “Vidas Passadas” é a mais perfeita negação de Hollywood, um filme adulto elíptico e poético.

BLOGUE DE HOMERO FONSECA
5 min readFeb 9, 2024

No filme, o não-dito e o não-mostrado são partes essenciais da narrativa.

Um filme que não é de ação. Não é comédia romântica. Não tem herói, nem vilão. Sem essa de “baseado em fatos reais”. Nada de cenas tórridas de sexo. Nem roubo, assassinato, sequestro, estupro, incesto; nem um só soco, quanto mais uma briga; menos ainda tiros; sequer uma explosão de carro. Zero efeito especial. Ninguém tem superpoderes. Nenhum ectoplasma aparece ao vivo. Sem qualquer reviravolta eletrizante. Seria chato, não fosse a sutileza que perpassa da primeira à última cena.

É quase um não-filme, pelos protocolos hollywoodianos. Que bênção! Que alívio! Chega de Hollywood e seus roteiros prêt-à-porter. Basta de infantilização da arte.

Vidas Passadas, estreia na direção em grande estilo da dramaturga e roteirista coreana-canadense Celine Song, em exibição no Rosa e Silva, é um filme de uma essencialidade minimalista. O que falta em estereótipos, sobra em delicadeza, sensibilidade, poesia visual, beleza, sugestão, silêncio, contemplação, intensidade, contenção, adultez enfim. A diretora Celine Song, dramaturga de renome, capricha no não-dito e não-mostrado como partes integrantes da narrativa, como ocorre na música com o silêncio, confiante num público adulto capaz de entender e curtir uma trama complexa.

O enredo conta história de uma mulher — Na Young — que, aos 12 anos, acompanha a família que migra da Coréia para o Canadá. Deixa um namoradinho em Seul, Hae Sung. Em Ontário, ela se torna escritora, como queria desde adolescente. Aculturada, muda o nome para Nora Young e vai morar em Nova Iorque, onde casa com o escritor judeu americano Arthur. Hae Sung reaparece via internet. O amor líquido na era digital é um subtema bem explorado na película.

O eixo da narrativa é a mulher, mostrada de forma precisa, valorosa, sem militâncias redundantes. A cineasta não cede ao orientalismo exótico (há referências a esoterismos, reencarnações, o conceito de In-Yun etc., mas a própria protagonista comenta, cética: “Os coreanos falam nessas coisas para seduzir pessoas”). Arrá!

Uma grande qualidade dessa estreia surpreendente é o equilíbrio interno, onde nenhum ingrediente predomina, como nas boas receitas: roteiro direção interpretação fotografia trilha sonora formam um todo harmônico, sem idiossincrasias irritantes. A câmera de Shabier Kirchner é cálida, sem ser intrusiva. A trilha sonora mínima de Christopher Bear e Daniel Rossen é expressiva e discreta.

Estruturada em três atos, a obra provoca em nossas cabeças colonizadas a pergunta apressada: com quem ela vai ficar? Mas o filme não é sobre isso, assim como Dom Casmurro não é sobre se Capitu traiu ou não traiu, embora a pergunta seja pertinente no registro de dúvida, proposital — que é a verdadeira matriz do romance. No filme, a narrativa, com toques autobiográficos, é oblíqua. Por exemplo, o tema surrado das ilusões perdidas é abordado em curtas falas de Nora, quando ela revela num tom casual, em momentos diferentes da vida, suas ambições literárias: ganhar o Prêmio Nobel, depois o Pulitzer e, por fim, contentar-se com o Tony Award.

O 1º ato, em Seul, mostra uma espécie de namoro não verbalizado de Na Young e Hae Sung, adolescentes. Eles têm uma conexão profunda, gostam um do outro, passam o tempo todo juntos, se afinam em quase tudo. Com extrema economia de falas, pincelam-se as respectivas personalidades: ela é uma menina ambiciosa e competitiva; ele, um garoto comum. A separação dos dois, inevitável pela imigração dos pais dela, faz do conhecido tema poético “quem vai e quem fica” um leitmotiv sem estridência.

No 2º ato, a narrativa cai um pouco de intensidade. Nora está com 24 anos e estuda para se tornar escritora. Estamos no início dos anos 1990 e, de repente, Hae Sung a encontra na internet e começam a conversar pelo Skype. Eles se falam como antigos amigos. Com notável sutileza, somos informados por vias indiretas, que ela quase o esquecera e estava até mesmo com o falar coreano enferrujado, só exercido em casa com mãe. É outra pessoa. Hae, ao contrário, é o mesmo. E continua com ela na cabeça mas, preso a um certo convencionalismo cultural, não faz a menor ideia do que fazer. Ele não tem meios para ir ao encontro dela, ela não considera voltar à Coréia. Tudo isso mostrado a léguas do melodrama, mas não de forma fria: há uma tensão no ar. Nora se dá conta do impasse e diz a ele que quer cortar o contato, precisa se concentrar na carreira. Hae se resigna.

3º ato: passam-se mais 12 anos, Nora está casada com Artur e vivem um amor tranquilo, morando num pequeno apartamento em Greenwich Village, tentando consolidar sua carreira aos 36 anos. Arthur é um cara zen, um pouco inseguro e, sem arroubos, idolatra Nora. Novamente Hae Sung aparece: manda uma mensagem dizendo que vai passar uns dias de férias em NY e quer encontrá-la. Nora avisa ao marido e vai ao encontro de Hae. Fazem um circuito turístico e falam banalidades. Ela, na volta, diz ao marido: “Você tinha razão; ele veio só pra me ver”. Marido e mulher conversam na cama, à meia luz.

Numa cena aparentemente sem pretensão, rola um diálogo de alta intensidade. Ele repassa sua vida com ela, conta que ela sonha em coreano, pergunta se ela sente atração por Hae Sung. Nora parece um pouco surpreendida pelas revelações do marido. Ela está lisonjeada por se descobrir objeto de amor dos dois homens. Arma-se um triângulo amoroso virtual — uma grande sacada do filme.

As interpretações de Greta Lee, John Magaro e Teo Yoo são contidas, nuançadas, com destaque para o ator coreano para seu personagem de um romantismo tímido e anacrônico, “bem coreano”, no dizer da moça americanizada.

Então vem o epílogo, de alta voltagem emocional, em que os três se encontram (a pedido do marido). Num dos diálogos mais densos do cinema, rico em sugestões, um lento movimento de câmara muda o enquadramento dos personagens, numa tacada genial. O espectador ou espectadora percebe que ali estava em jogo muito mais do que “o com quem ela ia ficar”. Ali pulsava uma história sobre o tempo e a vida, as escolhas pessoais, ilusões e desilusões. Sobre sentimentos, sem sentimentalismo. Emocionante, com aquela emoção racional provocada pela grande música. Um belo filme adulto.

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Jornalista e escritor. Só sei que nada sei (Sócrates), mas desconfio de muita coisa (Riobaldo Tatarana).

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