O jardineiro, o burro, o poeta e as palavras mutantes

BLOGUE DE HOMERO FONSECA
2 min readMar 30, 2024

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Lá nos ocos das Minas Gerais, o adjetivo “sistemático” pode ter um sentido oposto ao que dizem os dicionários.

Loucuras da linguagem: as palavras são traiçoeiras. Não porque tenham vida própria, como alardeiam intelectuais chegados a uma embromação. Mas justamente porque são produto humano: falíveis, ambíguas, mutantes. Vejam o caso de sistemático. Está em todos os dicionários: relativo a um sistema; que segue um sistema; que age segundo um método; metódico, organizado.

Pois bem. Há uns tempos, em conversa com uma mineira, pedi-lhe informação sobre um jardineiro, ex-funcionário dela. “Ele é sistemático!” — disse ela num tom pejorativo. Para mim, sistemático era uma qualidade. Na hora deixei passar, mas a palavra (manejada com um sentido desconhecido para mim) ficou morando nas cavernas de minha memória.

Agora, fui apresentado a um grande poeta, Donizete Galvão (1955–2014). Também mineiro, nascido em Borda do Campo, e emigrado desde jovem para São Paulo, onde trabalhou como jornalista e publicitário, até morrer de repente aos 59 anos. Tem publicados oito livros de poemas, além de Poesia reunida. No antológico “Escoiceados” (em que ele fala de um burro comprado pelo seu pai por ninharia), me deparo com o verso:

Chegou com fama
de sistemático,
cheio de refugos.

Danou-se. Então, sistemático tanto podia ser atribuído a gente, quanto a bicho! Evidentemente, nesse caso o adjetivo estava longe do significado usual. Afinal, o muar desconhece a noção epistemológica de sistema ou método. Taí uma charada.

Recorro ao meu amigo Ricardo Melo, mineiro como os demais personagens citados.

– Sistemático quer dizer complicado. Pessoa difícil de se lidar.

O verso se tornou cristalino, quando fico sabendo uma acepção do verbo refugar: [“negar-se (cavalo, boi etc.) a seguir caminho.”] Ou seja, o burrinho da infância do poeta, como o jardineiro da sua conterrânea, era teimoso, birrento, cheio de cismas (refugos), temperamental e idiossincrático, isto é, dado a uma veneta.

A palavra original, por mutação, vira quase o oposto, pois metódico é previsível, enquanto idiossincrático é imprevisível. Os dicionários desfilam sinônimos, mas não registram a exata variante mineira.

Doideira, sô.

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Jornalista e escritor. Só sei que nada sei (Sócrates), mas desconfio de muita coisa (Riobaldo Tatarana).

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