O Grande (pequeno) Ditador
Dois espectros rondam o Brasil: o coronavírus e a ditadura. Bolsonaro acelera o momento de ruptura com as instituições.
Nos últimos dias, o presidente Jair Bolsonaro radicalizou intensamente suas posições aparentemente malucas enquanto se agigantava a ameaça do coronavírus no país. Aparentemente porque suas atitudes são calculadas. Depois da convocação nacional à população para que desobedeça o isolamento (24/03), os vídeos que ele próprio divulgou de sua excursão às cidades satélites do Distrito Federal, ontem (29/03), misturando-se ao povo, tocando e sendo tocado, recebendo apoio de trabalhadores informais (que sem amparo concreto do próprio governo dele passarão fome), constituem uma declaração de guerra.
Ele não é burro, tem assessoria e pesquisa e segue uma linha ideológica bem definida; suas eventuais deficiências cognitivas e até mentais não são determinantes de seus posicionamentos esdrúxulos. Ele sabe o que está fazendo. Ao desafiar as instituições (Congresso, Justiça, Governos Estaduais, boa parte da Imprensa e até as normas do Ministério da Saúde), numa atitude que estarrece o mundo, Bolsonaro partiu para o tudo ou nada. Ao ir para as ruas, fez uma ligação direta com o povo, como todo candidato a tirano.
Parece que ele está contra todos e todos contra ele. Não é verdade. Ao contrário do que alardeiam comentaristas apressados — “Bolsonaro não mais governa” — ele ainda tem a investidura do cargo e não abrirá mão dela. Qualquer político convencional estaria morto. Mas ele não é convencional, tem carisma e joga pesado. Nesse ponto, seu radicalismo raia à loucura (mas tem método).
OS APOIOS DE BOLSONARO
Ele tem aprovação de mais de um terço da população, mantém a base direitista fiel e alinhada (apesar das deserções de alguns parlamentares, como Joice Hasselmann, e celebridades, como o cantor Lobão): o empresariado médio, tipo Junior Durski, dono da rede de restaurantes Madero; pastores evangélicos; amplos setores da classe média, que ensaiam carreatas contra o isolamento; porta-vozes influentes, como Roberto Justus; provavelmente boa parte dos caminhoneiros, além, claro, da militância de extrema-direita em todas as classes. Conta com apoio entusiástico das Polícias Militares, das milícias de todo o Brasil, de uma parte importante da mídia (como a TV Record) e principalmente de uma poderosa rede de robôs na internet. Não é pouca coisa.
O X da equação é o Exército (e demais forças armadas). Não se tem informações sobre como pensam os militares neste momento. Pela ponta do iceberg, há algum tipo de divergência entre os generais. Augusto Heleno e os que avalizaram o pronunciamento do dia 24 (quem?) fecham com a estratégia presidencial. O comandante do Exército, general Edson Pujol, havia dado uma declaração ambígua no mesmo dia — (o enfrentamento da crise causada pelo vírus “talvez seja a missão mais importante de nossa geração”) — que foi interpretada como contraditória ao discurso presidencial. O vice, general Hamilton Mourão, andava sumido, mas reapareceu, contradizendo o presidente de uma forma tortuosa (disse que a posição oficial do governo era pelo isolamento, o que não bate com as falas do presidente). Parece claro que ele se reapresentou como uma alternativa sensata para governar o país. Ninguém fala abertamente, tudo é insinuado, sugerido, como em momentos de grave crise (quando ainda estão se medindo as forças). Generais da reserva vez por outra prestam continência ao capitão. Já li que, de coronel até sargento, a maioria esmagadora da tropa faz ordem unida para ele (a conferir).
RUMO À RUPTURA
Juntando as pontas: ao passo que se acelera a crise da pandemia, o presidente caminha a passo de ganso para a ruptura. Ele dá sinais de quer decidir a parada antes que a pandemia vire uma catástrofe (e isso se aproxima celeremente, se os apelos dele e as necessidades imediatas da população pobre tiverem mais força que a quarentena decretada pela maioria dos governadores). Tal situação não pode se sustentar por muito tempo. Nesses termos, as esquerdas são carta fora da equação: não se uniram, não apresentaram um programa alternativo conjunto para enfrentar a pandemia, não estabeleceram um diálogo orgânico com o povo, parecem não entender o momento, limitando-se a seguir a pauta ditada por Bolsonaro, a trocar insultos com os bolsonaristas e a gritar por um impeachment (sem interação com as forças que verdadeiramente definirão o jogo). Hoje lançaram um documento conjunto: atrasado, tímido e vago, mas já é um primeiro passo.
Cenário possível: rapidamente a tensão entre Bolsonaro e as instituições chegará a um momento decisivo. Ele tentará assumir a condição de ditador (inventando alguma palavra para isso e justificando que estará justamente defendendo a democracia). Empalmado o poder, fará um discurso contradizendo tudo que disse até agora (ele faz isso a toda hora) e, em nome da nova realidade da pandemia, adotará algumas medidas restritivas à circulação preconizadas em todo o mundo (como fizeram Trump e outros líderes de direita) e apoiará economicamente as empresas (“para evitar o desemprego”), dando algumas migalhas aos pobres (os R$ 600 de iniciativa do Congresso) para evitar uma convulsão social. Pode ter tiro, sangue, morte. Talvez desemboque numa saída negociada. Tudo pode acontecer.
É só uma hipótese. Mil variáveis podem alterar muita coisa nesse quadro em questão de dias e até horas. Anotem.