Memorial da libido de D. Engrácia
A voz macia de Orlando Silva escapava do celular segurado pela neta: Lábios que beijei, mãos que afaguei…
Dona Engrácia fechou os olhos e deixou-se escorregar para dentro de si. Com a melodia de fundo musical, ouvia uma polifonia de vozes do seu passado de nonagenária. Aos poucos, os sons ficaram nítidos.
A MÃE: Menina, se comporta!
O PADRE: Isso é pecado, pecado, pecado, pecaaado, pecaaaaaaaaaado!
A PROFESSORA: Guarde-se pura para o casamento!
A TIA: Moça falada não arranja marido.
VIZINHA: Mulher perdida vale menos que um molambo!
A BÍBLIA: Assim como a igreja está sujeita a Cristo, também as mulheres estejam em tudo sujeitas a seus maridos.
O MARIDO: Abra as pernas, coração.
Nesse mergulho em seu passado distante, dona Engrácia apenas não conseguia ouvir o marido dizer, nas constantes e prolongadas ausências de casa, para onde ia, fazer o quê, com quem, quando voltava. Essa lacuna encheu seu peito de uma angústia antiga.
Coincidiu com o fim da música no You Tube. Ela abriu os olhos e pediu para a neta mostrar o retrato do Cantor das Multidões. E murmurou para o celular:
– Orlando, se eu tivesse passado uma noite contigo, eu tinha te deixado molinho, molinho.