Memorial da libido de D. Engrácia

BLOGUE DE HOMERO FONSECA
1 min readDec 15, 2024

--

A voz macia de Orlando Silva escapava do celular segurado pela neta: Lábios que beijei, mãos que afaguei…

Dona Engrácia fechou os olhos e deixou-se escorregar para dentro de si. Com a melodia de fundo musical, ouvia uma polifonia de vozes do seu passado de nonagenária. Aos poucos, os sons ficaram nítidos.

A MÃE: Menina, se comporta!

O PADRE: Isso é pecado, pecado, pecado, pecaaado, pecaaaaaaaaaado!

A PROFESSORA: Guarde-se pura para o casamento!

A TIA: Moça falada não arranja marido.

VIZINHA: Mulher perdida vale menos que um molambo!

A BÍBLIA: Assim como a igreja está sujeita a Cristo, também as mulheres estejam em tudo sujeitas a seus maridos.

O MARIDO: Abra as pernas, coração.

Nesse mergulho em seu passado distante, dona Engrácia apenas não conseguia ouvir o marido dizer, nas constantes e prolongadas ausências de casa, para onde ia, fazer o quê, com quem, quando voltava. Essa lacuna encheu seu peito de uma angústia antiga.

Coincidiu com o fim da música no You Tube. Ela abriu os olhos e pediu para a neta mostrar o retrato do Cantor das Multidões. E murmurou para o celular:

– Orlando, se eu tivesse passado uma noite contigo, eu tinha te deixado molinho, molinho.

--

--

BLOGUE DE HOMERO FONSECA
BLOGUE DE HOMERO FONSECA

Written by BLOGUE DE HOMERO FONSECA

Jornalista e escritor. Só sei que nada sei (Sócrates), mas desconfio de muita coisa (Riobaldo Tatarana).

No responses yet