Maio de 1968: o que há numa foto

A saga de Caroline De Bendern, filha da nobreza inglesa e Musa de Maio em Paris, deserdada pelo avô pela foto que virou símbolo da luta pela liberdade.

BLOGUE DE HOMERO FONSECA
3 min readMay 15, 2018
Caroline De Bendern com a bandeira vietcong e Marianne, de Delacroix, símbolos da Liberdade

A icônica foto de uma jovenzinha loura carregando uma bandeira vietcong na passeata de 13 de maio de 1968 em Paris foi comparada ao célebre quadro A liberdade guiando o povo, de Eugène Delacroix, de 1830, e imortalizou a moça. Caroline De Bendern era uma inglesinha de 23 anos. Descendia de uma aristocrática família britânica e, no ano anterior, depois de ser expulsa de vários colégios grã-finos, mandou-se para Nova Iorque, onde tentava a carreira de modelo e praticou convictamente o slogan “sexo, drogas e rock’n’roll’. Fez parte do círculo de Andy Warhol e John Palmer. Logo estaria metida nos protestos contra a guerra do Vietnam e a segregação racial nos EUA. Chegou a participar com Palmer de umas reuniões de um grupo maluco que pretendia explodir uma fábrica de napalm, mas que ficou só na intenção. Em maio de 1968 ela estava onde? Hein, hein? No meio da turma boêmia do Quartier Latin. Tinha se juntado ao grupo francês de cinema experimental Zanzibar e trabalhado em vários filmes, entre eles Détruisez-vous (Destrua-se) de Serge Bard, que estreara em abril. No dia 12 de maio, encerraram-se as filmagens de La société est une fleur carnivore (A sociedade é uma flor carnívora), de Guy Chalon / Gérard Gozlan, espécie de docudrama narrado por Jean-Louis Trintignant, em que atuou ao lado de um dos líderes do movimento estudantil Daniel Cohen-Bendit e do pintor Jean-Jacques Lebel, que havia liderado a ocupação do Teatro Odeon.

No dia seguinte, foi à passeata com Lebel, que carregava uma bandeira vietcong. À altura da Place Edmond-Rostand, seus pesinhos começaram a doer e ela pediu a Jean-Jacques pra montar em seus ombros e segurou a bandeira vermelha-azul com estrela amarela. O fotógrafo Jean-Pierre Rey, da agência Gamma, trabalhava cobrindo as manifestações quando divisou a figura emblemática de Caroline, que se destacava sobre o mar de cabeças e, com a postura hierática de porta-bandeira da liberdade, parecia liderar a “revolução”. Rey tinha feito muitos registros excelentes naquele dia, mas o de Caroline De Bendern, publicada pela Life na edição de 24 de maio, entraria para a História. Virou o ícone daqueles dias e Caroline ficou conhecida como a “Marianne” (a personagem de Delacroix, símbolo da República Francesa) de 1968.

A fama custou caro à jovem rebelde com causas. Quando viu a imagem, seu avô, sir Maurice Arnold Bischoffsheim, barão de Forest-Bischoffsheim e conde de Bendern, então com 88 anos, arregalou os olhos, quase teve um infarto e, sem piscar, deserdou a neta. Caroline foi a Londres tentar demovê-lo da medida drástica, discutiram feio e ela saiu batendo a porta (“Num gesto pouco inteligente”, disse ela ao jornal espanhol La Razón, edição de 24/01/2018). A foto rodou o mundo e, a cada década de comemoração de “aniversário redondo” dos eventos de Paris (1978, 1978, 1988), lá estava a Musa de Maio em tudo que era revista e jornal (agora mesmo foi capa da edição especial do Le Monde do 1º de Maio). La De Bendern, lisa desde haver sido deserdada pelo avô, entrou quatro vezes na justiça francesa, tentando ganhar algum com os direitos de imagem. Mas os juízes negaram em todas, entendendo a sua pose como um fato público.

Atualmente com 73 anos, Caroline mora nos arredores de Paris. Foi casada com o compositor Jacques Thollot, morto em 2014, continua na militância, agora na defesa do meio-ambiente e contra o Brexit (saída da Inglaterra da União Européia). Na entrevista ao La Razon, revelou-se melancólica com os tempos atuais, em que o slogan “É proibido proibir” continua mais aplicável do que antes, a seu ver. Perguntada sobre se apoiava o movimento das mulheres contra o assédio sexual, disse concordar, mas advertiu para o perigo de se tornar “uma psicose coletiva que faça os homens nem se atreverem a nos sorrir, o que seria uma pena”. Revelando simpatia pelo anarquismo, uma das principais vertentes ideológicas dos estudantes franceses em 1968, defendeu, além do meio-ambiente, “a preservação de todas as coisas que configuram a doçura do viver: o belo, a arte, o swing e o humor, tudo aquilo sem o qual a vida não valeria a pena”.

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Jornalista e escritor. Só sei que nada sei (Sócrates), mas desconfio de muita coisa (Riobaldo Tatarana).