Lições de um encontro

Ela apareceu do nada. E me envolveu com sua fala aliciante.

BLOGUE DE HOMERO FONSECA
2 min readMar 16, 2022

Eu acabara de sair da farmácia quando ela apareceu na minha frente.

- O senhor está diferente, mas mesmo assim eu lhe reconheço. Não está me reconhecendo, não?

Ela era morena, mais pra gorda, vestia-se modestamente. Recuei um passo e pedi-lhe que baixasse a máscara por um instante. Ela prontamente me atendeu. Vi um rosto comum, de mulher do povo. Os cabelos tinham umas mechas naturais grisalhas. Devia ter uns 40 e tantos anos.

- É, não lhe reconheço mesmo não.

- Mas doutor… Como é mesmo o seu nome?

- Homero.

- Doutor Homero, claro, lembrei agora. Doutor Homero, eu trabalhei com o senhor. O senhor está aposentado de onde?

- Do INSS.

- Sempre brincalhão, doutor Homero. Digo de que firma?

- Cepe.

- E então. Eu trabalhei lá, na limpeza. Diga um nome do seu tempo…

- Clarissa.

- Gente muito fina. Assim ó (e levantou os dois polegares).

Logo emendou:

- Depois que eu saí de lá, fiquei fazendo um bico aqui e ali. Meu marido era taxista, ali do ponto do Bompreço. Ele morreu o ano passado. Agora, estou com uma menina de oito anos, com câncer.

Fiz menção de seguir em frente. Ela se aproximou mais.

- Eu lhe reconheci logo que lhe vi. Pensei em pedir uma coisa, mas estava com vergonha. É minha filha. Ela precisa de uma bolsa de colostomia…

Tirou uns papéis da sacola de plástico.

- Aqui estão os documentos médicos. Eu estou aperreada porque não tenho dinheiro pra comprar. É tão cara uma bolsa dessas.

- Quanto é?

Ela hesitou um pouco. Os olhos estavam marejados.

- Quarenta e oito reais.

Abri a carteira. Tirei trinta reais e lhe entreguei.

- Minha colaboração.

- Mas doutor Homero… Eu não tenho o resto do dinheiro. Inteire, por favor.

Peguei os 30,00 da mão dela e dei-lhe uma nota de R$ 50,00.

- Ah, doutor Homero. Muito obrigada. Foi Deus que me fez encontrar o senhor. Muito obrigada. Muito obrigada. Deus lhe pague.

Ao agradecer, falava um pouco mais alto. Apesar de estarmos ambos de máscaras, tive a impressão de sentir um cheiro de cerveja. Mas ela já se afastava. Dei dois passos e a ficha caiu: Fui engrupido! Dei uma de babaca!

Enquanto caminhava para casa, reconstituí a conversa e estava claro como água a estratégia dela de ir construindo um diálogo, em que ela perguntava e em cima de minhas respostas prosseguia o papo até levar ao que interessava. E quanto mais eu lembrava, mas me impressionava a habilidade verbal daquela mulher. Sua fala era persuasiva, natural, aliciante, com as entonações certas. E os olhos marejados. Uma grande atriz instintiva. Sua performance bem valia os R$ 50,00 que lhe dei. Vou tentar localizá-la. Quero contratá-la para fazer o telemarketing do meu próximo livro. Vai ser um sucesso.

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Jornalista e escritor. Só sei que nada sei (Sócrates), mas desconfio de muita coisa (Riobaldo Tatarana).

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