Há um pesadelo por trás da ideia de um ‘novo normal’

BLOGUE DE HOMERO FONSECA
6 min readOct 6, 2020

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Antropólogo Jean Segata alerta para a precarização do trabalho e observa que no Brasil vivemos um isolamento de classe média alta branca de centros urbanos. Pobres e negros são considerados mão-de-obra essencial.

Entrevista com Jean Segata, professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Por Marco Weissheimer do portal Sul21.

Trechos marcantes:

Sul21 — Que lições já podemos tirar da pandemia de covid-19 no campo da saúde, em especial no tema das percepções envolvidas na elaboração de políticas públicas de saúde?

Jean Segata: Uma questão importante que a gente precisa ter em mente para responder a essa pergunta é entender o que é mesmo uma pandemia. É um termo que vem da epidemiologia e que indica uma determinada situação. Mas, ao mesmo tempo, é um conceito que tem uma certa dimensão abstrata. Uma pandemia designa um estado no qual há muitos surtos acontecendo em diversos lugares ao mesmo tempo, com diferentes intensidades, singularidades e agravamentos. Esses agravamentos não dependem exclusivamente da dinâmica do vírus ou da sua capacidade patogênica. Eles também dependem de questões culturais, sociais e econômicas.

Uma coisa é olhar para uma pandemia se manifestando em um país como o Brasil, onde a vida já é levada no limite, onde as pessoas vivem numa situação de precariedade, com pouca proteção social. Elas não tem o direito de preservar suas vidas, fazendo um isolamento, precisando se expor à rua, utilizando ônibus e trens para ir ao trabalho e enfrentando grandes aglomerações. Temos aí um agravante de natureza econômica. Essas pessoas precisam trabalhar e, muitas vezes, acabam se expondo a situações que não são as mais adequadas em termos de saúde. Temos vários exemplos disso perto de nós. O Rio Grande do Sul foi um dos estados onde um setor que foi convertido em serviço essencial, nos frigoríficos da indústria da carne, se tornou um ambiente altamente contaminante. Isso ocorreu não porque, necessariamente, os vírus venham da carne, mas sim porque esse ambiente favorece a contaminação. Esses trabalhadores não têm muita alternativa e precisam seguir trabalhando para manter suas vidas.

Podemos pensar também em condicionantes sociais e políticos. Não temos um ministro da Saúde, temos um presidente que advoga contra a ciência e que defende o uso de cloroquina para o tratamento da covid-19, em um flagrante descaminho em relação às orientações técnicas de saúde. Tudo isso embaralha as noções de cuidado de si que as pessoas têm e também de cuidado coletivo. Isso também complexifica as noções que as pessoas têm de risco e assim por diante. Também é preciso levar em consideração as inúmeras questões culturais que dizem respeito ao cuidado e ao risco, que não são necessariamente aquelas trazidas pelo escopo da ciência, mas que são práticas culturalmente situadas que não deixam de ser relevantes para a vida das pessoas.

Sul21: Em que sentido, mais precisamente, esses condicionantes influenciam ou deveriam influenciar a construção de políticas na área da saúde?

Jean Segata: Quando formos pensar na construção de políticas públicas de saúde é preciso levar em conta essas singularidades que cada região, que cada grupo mais ou menos cultural e socialmente definido tem do que é saúde e doença. Por exemplo, como é que vamos pensar numa política pública abrangente de saúde numa cidade como Porto Alegre se temos comunidades que não são abastecidas por água e que não podem sequer lavar as mãos para atender as medidas mais básicas de saúde, como é o caso de uma boa higienização das mãos. Álcool gel, máscaras ou até mesmo sabonetes são itens de luxo em várias cestas básicas. Precisamos pensar em políticas públicas que atendam, de uma forma mais orgânica, essas diversas experiências de saúde e de doença.

Sul21: Na sua avaliação, o que essa pandemia do novo coronavírus tem a ver com o modo como estamos nos relacionando com o meio ambiente e com os animais?

Jean Segata: Para mim essa pandemia é mais um sintoma de algo que é muito maior e que se chama capitalismo. Essa é a verdadeira enfermidade que tem adoecido todos nós, que tem corroído nossos corpos e que se corporifica em relações de trabalho cada vez mais precarizadas, colocando a vida das pessoas cada vez mais no limite. Além disso, ela se manifesta em formas de exploração de ambientes e de animais cada vez mais comoditizadas e transformadas em partes de um processo industrial de larga escala que não está assumindo suas responsabilidades pelo que está acontecendo no planeta.

O capitalismo é uma doença que se manifesta em nossos corpos. Ele se corporifica no motorista de Uber que precisa trabalhar 15 horas por dia pra poder pagar o MEI , no entregador de aplicativo que tem que pedalar quilômetros por dia, em um trânsito super-hostil, porque ele ganha cinco reais por entrega, quando ganha isso. Precisamos prestar atenção em quanto essas paisagens doentias, sejam elas do mundo do trabalho ou da natureza. Se olharmos bem o que vivemos neste período de isolamento, a gente vê que viveu um isolamento de classe média alta branca de centros urbanos. Pobres e negros são considerados trabalho essencial, mão-de-obra essencial e, por isso, não tem o direito de preservar sua saúde e precisam expor os seus corpos para sustentar a manutenção de outros corpos. Então, o que temos é uma profunda relação de desigualdade com outros humanos, com animais não humanos e com o ambiente. Tudo isso está ligado a uma doença que a gente conhece há muito mais tempo e o nome dela é capitalismo.

Sul21: Muito tem se falado sobre um suposto “novo normal” no pós-pandemia. Em que medida, na sua opinião, podemos falar da perspectiva de vivermos uma espécie de nova normalidade em um período pós-pandemia? O que significa essa formulação exatamente?

Jean Segata: Eu tenho um certo arrepio em relação a isso. “Novo normal” talvez seja uma maneira de dizer que esses processos cada vez mais destrutivos da vida serão naturalizados. Talvez esse “novo normal” seja uma maneira de dizer que daqui em diante essa necropolítica que estamos vivendo será naturalizada, como os mais de 140 mil mortos que já temos no Brasil. Talvez as pessoas aceitem pensar que esse é um custo necessário para a vida de outros.

Tenho um certo pavor também de pensar outras coisas, como a normalização desse modelo home office no qual estamos trabalhando hoje. Eu me sinto um privilegiado. Estou dando as minhas aulas na universidade a partir da minha casa, participo das reuniões aqui da minha casa e as minhas filhas podem ter aulas online. Mas eu sei que isso está longe de ser, não vou dizer nem a média, mas a realidade da maioria das pessoas. É uma minoria que tem condições de fazer isso e precisamos não normalizar esse tipo de situação. A gente precisa destacar que isso coloca em relevo o sistema extremamente desigual no qual vivemos.

E nem podemos falar de conforto, exatamente, porque essa “homeofficezação” também é outra precarização. Eu não sei o quanto as grandes corporações não vão começar a tirar vantagem disso. Devem estar pensando: por que vamos um alugar um prédio inteiro de escritórios no Moinhos de Vento ou na Avenida Paulista se podemos manter essas pessoas em casa e poupar esse dinheiro. Podem dar um subsídio para a internet ou nem isso, porque se elas não quiserem outros vão querer trabalhar. Elas que arquem com os custos de seu próprio trabalho, com internet, com a organização das agendas, talvez com a destruição de relações familiares.

Leia a íntegra da entrevista aqui: https://www.sul21.com.br/ultimas-noticias/coronavirus/2020/10/ha-um-grande-pesadelo-por-tras-da-ideia-de-um-novo-normal-diz-antropologo/#.X3ngQKYBrpo.twitter

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Jornalista e escritor. Só sei que nada sei (Sócrates), mas desconfio de muita coisa (Riobaldo Tatarana).

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