Eu me confesso
Uma autoapresentação político-ideológica, meio tardia.
Recentemente, ao estrear no portal GGN, fiz uma autoapresentação, como devem fazer as visitas. Deveria tê-lo feito aqui no Medium, há um tempo atrás. Então, embora tardiamente, aqui vai:
Jornalista por cinco décadas, autor de uma dúzia de livros, entre ensaios, reportagens e ficção, recifense, ex-fumante, ex-bebedor (exceção para uma taça de vinho de vez em quando), torcedor sofrido do Santa Cruz, casado com Iracema, pai de quatro filho(a)s e um enteado, avô de sete neta(o)s. Agnóstico, nem pobre nem rico (mais pra pobre que pra rico), se interessa por literatura, música, cinema, comportamento, política e boa conversa. Ultimamente, dada a realidade circundante, tem escrito mais do que gostaria sobre política. Mas que fazer quando, de repente, não mais que de repente, acordamos numa noite trevosa na encruzilhada entre a barbárie e a civilização?
Acredita que todos nascem iguais e devem ter os mesmos direitos a uma vida digna, ou seja uma renda/salário decente, moradia idem, transporte idem idem, educação, saúde e sossego. Certo, isso (quase) todos dizem. O problema é como alcançar essas metas fáceis de falar e difíceis de concretizar.
É partidário incondicional da democracia, entendida não como o simples exercício de votar (democracia nominal). Democracia é valor universal e deve ser usufruída por todos, e não apenas pelos privilegiados com acesso à educação, à informação, aos veículos de comunicação, aos canais partidários, aos recursos para viabilizar as campanhas eleitorais, às redes de contatos claros ou subterrâneos.
Reconhece: o capitalismo é necessário para gerar riqueza (pelo menos no horizonte visível) e o estado é imprescindível para regular sua (dele, capitalismo) voracidade e redistribuir a riqueza, laborando ativamente para a construção de sociedades mais equilibradas. Entende que o mercado, cujo único objetivo é o lucro, ontologicamente tende à concentração; favorece o oligopólio e o monopólio; é cogerador de corrupção; frauda a concorrência, forma cartel, pratica dumping e destrói a natureza. O mercado não tem pátria nem sentimentos. Atua acima dos governos e, quando impõe suas condições ao jogo político, sem rédea nem freio, representa uma ameaça à democracia e à liberdade (valores que os capitalistas repetem como um refrão, mas que atropelam quando a expansão capitalista assim o exige). Embora essencial à dinâmica da economia, sem forte controle político-institucional se transforma em um monstro desenfreado e insaciável.
O capitalismo, por natureza expansionista, em sua fase inicial, mercantil e desbravadora, era épico; em seu momento industrial e imperialista, foi destruidor e criador ao mesmo tempo; na atual etapa de financeirização global, é desumano, cruel e violento, mais destruidor que nunca. O antigo dono da fábrica e do banco, conhecido dos trabalhadores e clientes, explorador mas de rosto humano, morreu há muito tempo; seu filho hoje é acionista majoritário e anônimo de empresas geridas por executivos absurdamente remunerados, cujo lema é “o mercado acima de todos e que tudo o mais vá pro inferno”.
Já se vê que o colunista estreante é de esquerda. Considera uma falácia o papo de que “acabou esse negócio de esquerda e direita” (muito difundido por direitistas desconfortáveis). Compreende, no entanto, que os dois conceitos não são os mesmos dos tempos da Revolução Francesa, do Manifesto Comunista, da Revolução Soviética, do nazifascismo, do Estado Novo entre nós. O mundo mudou a galope, trazendo na garupa novos problemas. Soluções que pareceram em algum momento inevitáveis e aceitáveis eram ruins e falharam fragorosamente: ditadura do proletariado, partido único, eliminação radical da propriedade privada. Mas há uma dicotomia que permanece e impede que o velho confronto ideológico seja coisa do passado: enquanto houver super-ricos e miseráveis numa determinada sociedade, haverá direita (que defenderá que tudo continue assim) e esquerda (que lutará para que isso mude). E Thomas Piketty, em seu O capital no século XXI, prova que é isso que está acontecendo: a concentração de renda avança em todo o mundo e, por consequência, a miséria também.
Filosofando (só um pouquinho), os dois grandes ramos da ideologia política que, há séculos, dividem as pessoas, baseiam-se nos ideais de liberdade e de igualdade. Grosso modo, a ênfase em um ou outro valor define quem é de direita e quem é de esquerda. Mas na prática a teoria é mais complexa, como demonstra Norberto Bobbio, em seu Direita e esquerda — Razões e significados de uma distinção política, em que o filósofo demonstra que é a oposição entre igualdade e desigualdade o fundamento maior da disrupção política (já que a liberdade é sacrificada tanto pela extrema direita quanto pela extrema esquerda). Bobbio, em resumo, argumenta que historicamente o ser humano é simultaneamente igual (como espécie) e desigual (como indivíduo) e define um esquerdista como quem acredita que a maior parte das desigualdades são sociais e um direitista como aquele para quem as desigualdades são naturais. Seus argumentos são profundos, sólidos, complexos e, ao final, ele se posiciona, sem sombra de dúvida: “… na corrida desenfreada e incontrolada rumo a uma sociedade globalizada de mercado, destinada a criar sempre novas desigualdades, os ideais da esquerda estão mais vivos do que nunca”.
Nove fora os extremos, este novo colunista, talvez ingênuo, tem liberdade e igualdade como sonho de consumo. E luta com suas modestas armas (as ideias e o teclado), por uma sociedade onde liberdade e igualdade sejam bens distribuídos equitativamente (o que é diferente de igualdade absoluta). Para ele, liberalismo e socialismo são duas utopias: nenhuma sociedade até hoje foi inteiramente livre, nem totalmente igual. No sentido brilhantemente desenhado por Eduardo Galeano: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.”
Pensar o Estado, não como mínimo, nem máximo, mas pelo critério da necessidade. Quanto mais equilibrada socialmente uma nação, menos estado será preciso (apenas o suficiente para garantir o equilíbrio). Quanto mais desigual um país, maior e mais imprescindível será o estado (para conter o instinto selvagem do capitalismo e prover os direitos básicos para os cidadãos). Nesse país peculiar chamado Brasil (na realidade, dois países, como Jacques Lambert tão bem expõe em Os dois Brasis), talvez a cantilena neoliberal tenha uma parte de razão: provavelmente há estado demais para os mais ricos (burocracia tentacular), mas, seguramente, há estado de menos para os pobres e isso é materializado nos grotões abandonados e nas periferias conflagradas, a ponto de chegarmos onde chegamos no Rio de Janeiro e para onde caminhamos do Oiapoque ao Chuí.
De tudo o exposto até aqui, não se pense que este escriba seja adepto da máxima “a virtude está no meio” (até porque o centro político é móvel, depende do contexto). Nem postule retoricamente uma indefinível terceira via. Nem queira assumir postura de isentão. Nonada. Não. Nunca. Ele acredita, isto sim, numa relatividade ditada pelas circunstâncias de tempo e lugar: onde houver totalitarismo, sejamos politicamente liberais; onde impera a iniquidade social, sejamos socialistas democráticos radicais. Importar modelos rígidos de outras realidades costuma ser improdutivo, muitas vezes contraproducente. Trocando em miúdos, o recém-chegado a este vibrante jornal digital acredita que, em Pindorama, o país do privilégio, ser de esquerda, além de opção política, é imperativo moral, o mesmo valendo para liberais e centristas autênticos. Podem rir à vontade cínicos de plantão, neoliberais selvagens, moralistas hipócritas.
Feita esta autoapresentação, nesse tom meio “confissão de princípios”, o colunista se compromete a tratar de temas mais objetivos, menos abstratos, sintonizado com o presente. Se possível, falando de literatura, de música, de cinema, de artes e cultura em geral. Mas dificilmente pode esquecer o poema de Bertolt Brecht, Aos que virão depois de nós, quando diz:
Que tempos são esses, quando
falar sobre flores é quase um crime
pois significa silenciar sobre tanta injustiça?