Economia ou vida?
Dicotomia persiste. E o governo federal fez sua escolha, desde o começo. É só seguir os números, como fizeram os economistas Roberto Afonso e Élida Pinto, numa ponderada análise orçamentária.
Mandetta aparecia todo dia na tevê e redes sociais, defendendo a quarentena. Bolsonaro, inimigo do isolamento, ficou incomodado. Não com a posição do ministro: afinal, qualquer dos caminhos que se revelasse o certo, o governo tinha o pé nele. O que incomodou foi o protagonismo do ministro, quem sabe de olho gordo na presidência em 2022. O ministro da Saúde saiu, com aura de herói para boa parte da opinião pública.
O que poucos sabem é que, por baixo desse falso dilema, a ação de Mandetta seguia fielmente a linha da chefia: tratar a pandemia como algo que não merecia a prioridade do governo, uma “gripezinha” no dizer esculachado do chefe. Como provavelmente vocês também, eu não sabia disso. Pura falta de informação. Fiquei sabendo por um artigo rigoroso dos professores José Roberto Afonso e Élida Pinto, publicado hoje no portal Poder 360: “A velha falta de prioridade e uma nova tragédia anunciada”.
É um trabalho baseado em fatos e números. Tento um resumo:
- Dos R$ 226,8 bilhões previstos no orçamento da União para combater a covid-19, apenas R$ 5 bilhões foram gastos até agora (2,3%).
- O valor total (R$ 226,8 bi) para combater a pandemia na área de saúde é irrisório diante do R$ 1,169 trilhão anunciado para apoio à atividade econômica e de mais R$ 1,2 trilhão destinado pelo Banco Central para “assegurar liquidez ao mercado financeiro” (leia-se, uma ajudazinha aos bancos). A economia ou a vida? Os dados revelam a escolha do governo.
- Os Estados e Municípios — responsáveis por 80% dos gastos com saúde pública no Brasil, por conta da descentralização promovida pelo SUS — estão à beira da bancarrota por falta dos recursos federais, ameaçados de atrasar ou suspender pagamentos aos fornecedores de equipamentos e insumos hospitalares e até mesmo aos médicos e demais profissionais de saúde. Imaginem a situação.
Acrescento notícia recente: Paulo Guedes — tão ligeiro no socorro aos bancos e empresas — negociou com o presidente do Senado a liberação de mais R$ 60 bilhões para Estados e Municípios, além de adiar o pagamento de mais R$ 60 bilhões, a serem cobrados mais na frente com juros.
No frigir dos ovos, a prioridade do governo federal é a economia. A vida… segue, no meio do tiroteio da pandemia.
Se for no ritmo da liberação até agora, o cenário será apocalíptico, conforme traçado pelos professores:
“É preciso restaurar o potencial arrecadatório estadual e municipal subtraído pela recessão sob risco de colapso de serviços públicos essenciais (…) como, por exemplo, educação básica obrigatória, administração prisional, segurança pública, gestão de resíduos sólidos, tratamento de água e esgoto, manutenção de vias públicas, guarda patrimonial e mobilidade urbana. A desordem social acarretaria uma desorganização ainda maior dos negócios, já abalado diretamente pela covid-19, e a própria a União acabaria afetada também na sua capacidade de arrecadar impostos, quando não até mesmo para emitir títulos.” O caos bate à nossa porta.
José Roberto Afonso e Élida Pinto chamam a atenção para um alerta do Centro de Estudos Estratégicos do Exército Brasileiro, que propõe acompanhar indicadores que não sejam apenas os de saúde que todo dia se divulgam (contagem de pessoas contaminadas, mortas e recuperadas) como também números de trabalhadores demitidos, empresas fechadas, estoques de combustíveis, de assassinatos, roubos e furtos, de saques, bem como valor da arrecadação de impostos “essencial para a saúde financeira dos entes federados”.
O novo ministro se diz afinado com o chefe. Nada indica que mudará essa orientação, muito pelo contrário. Rumamos para a “nova tragédia anunciada” do título do artigo, que enfatiza: “É urgente um reposicionamento estratégico e gerencial do gasto público”.
A íntegra está em https://www.poder360.com.br/opiniao/coronavirus/a-velha-falta-de-prioridade-e-uma-nova-tragedia-anunciada-por-jose-roberto-afonso-e-elida-pinto/