Dostoiéviski, de avô para neto
Uma pungente experiência de leitura prova como literatura e vida podem estar — e estão — entrelaçadas.
Certo dia, meu amigo Luís Augusto, conversando sobre os diálogos filosóficos-literários mantidos com o neto adolescente Zion, 14 anos, contou que o carinha, ao fim de uma profunda reflexão conjunta, saiu-se com esta:
— Pois é, vô. Nós somos as duas pessoas mais incompreendidas do mundo!
Esta semana, foi a vez de Geraldo contar uma experiência com o neto Caio. Falávamos por telefone quando, à certa altura, por essas associações de ideias comuns, o papo enveredou para a confusão que muitos leitores fazem entre autor e narrador. Ele lembrava a opinião de uma médica, que disse não gostar de Gabriel García-Márquez, pois tinha aversão a velhos se gabando de proezas sexuais. Ela acabara de ler Memórias de minhas putas tristes.
Eu disse que quando pinta uma confusão dessas — no caso entre autor e personagem — dou um exemplo extremo: Dostoiévski não precisou matar uma velha para escrever Crime e Castigo.
Meu velho amigo confessou então haver começado, mas não terminado, a leitura da consagrada obra: tinha 19 anos, não sabia ainda o que fazer da vida e o romance estava empurrando-o para uma traiçoeira depressão. Antes de cair no fosso, parou de ler e nunca mais recomeçou. Cinquenta anos depois, o neto Caio, 17 anos, comprou o livro do grande escritor russo. Entusiasmado, ia lendo e reproduzindo os episódios por telefone ao avô. Um dia, parou de ligar. Geraldo quis saber o motivo:
— Parei de ler, vô. Estava ficando deprimido.