Como nasce um romancista

Para se livrar do discípulo que todo dia lhe aporrinhava, levando-lhe um conto novo para avaliar, Cesare Pavese deu um conselho a Italo Calvino que mudou a história da literatura no século 20.

BLOGUE DE HOMERO FONSECA
2 min readFeb 4, 2022

Com a retirada dos alemães e a derrocada do fascismo, ao fim da Segunda Guerra Mundial, a vida cultural na Itália começou um novo processo de renascimento, como tudo o mais no país mediterrâneo. Em Turim, a agitação se concentra em torno do escritor, poeta e tradutor Cesare Pavese (1908–1950) e da Editora Einaudi, que publicaria as obras de Antonio Gramsci.

Um jovem — que participara da resistência contra a ocupação alemã, cursava Letras, morava num sótão sem aquecimento e tentava ganhar a vida como jornalista — escreve contos furiosamente. Conseguira a publicação de um na revista Aretusa, de Roma, por gestão de Pavese, um nome já respeitado nos meios literários, apelidado pelos amigos de “o ditador editorial” por sua função de editor na Einaudi.

O novato também teve uma de suas histórias curtas publicada no semanário Il Politecnico, de Milão. Produzia freneticamente (por seu jeito nervoso, ganhou de Pavese o apelido de Esquilo) e, mal terminava um conto, corria para a editora a mostrá-lo ao seu protetor. Super ocupado, Pavese arranjou um jeito de não ser procurado diariamente no trabalho:

- Ô rapaz, por que tu, ao invés de cometer tantos contos, não escreves um romance? É mais fácil conseguir o reconhecimento literário montado no corcel romanesco do que tangendo um rebanho de ovelhas contísticas.

E assim Italo Calvino (1923–1985) se tornou um romancista.

Um ano depois (1947) entregou os originais de Il sentiero dei nidi di ragno (A trilha dos ninhos de aranha), que Pavese passou ao dono da editora, Giulio Einaudi, apesar de fazer algumas restrições ao texto. Einaudi aprovou entusiasticamente a obra, cuja primeira edição vendeu seis mil exemplares, um relativo sucesso para a época.

Calvino escreveu 14 livros de ficção (a grande maioria romances) e três de ensaios, tornando-se um dos grandes escritores do século 20. Entre suas obras-primas estão as narrativas O visconde partido ao meio (1952), Amores difíceis (contos, 1970), Cidades invisíveis (1972) e Se um viajante numa noite de inverno (1979).

Se um viajante… é uma aula de escrita primorosa: usando artifícios vanguardistas, inclusive a ausência de enredo (na realidade, trocando o enredo 10 vezes, isto é, a cada capítulo, quando o livro vira outro livro), realiza uma bela obra — instigante, ousada, multifacetada e, para um leitor minimamente qualificado, inteligível -, ao contrário dos maçantes exercícios destinados aos críticos, cometidos por escritores loucos por encontrar tesouros submarinos, mesmo sem saber nadar.

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Jornalista e escritor. Só sei que nada sei (Sócrates), mas desconfio de muita coisa (Riobaldo Tatarana).

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