Cena de um casamento

BLOGUE DE HOMERO FONSECA
4 min readSep 10, 2022

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Degustação: aqui vai o 1º capítulo de Tarcísio Pereira — Todos os livros do mundo

O cenário: Natal, anos 1940 — Foto Jaeci Galvão (reprodução da Internet)

CENA

Era 1947. Domingo. Do portão principal da Igreja de São Pedro, no bairro popular do Alecrim, em Natal, saem os recém-casados. Dão alguns passos, param um instante a confabular, ela fala, gesticulando com um buquê na mão, ele escuta calado. Recomeçam a andar, viram à direita e sobem a Avenida 9. Avenida só nos projetos da Prefeitura: é uma rua poeirenta, de casas modestas, intercaladas por terrenos baldios. Sob o sol tinindo, os noivos seguem de braços dados, num passo quase solene, olhando para a frente. Sozinhos, sem padrinhos, damas de honra, parentes, nada. Chamam a atenção das gentes nas calçadas, na tagarelice dominical na porção sombreada da rua. Do outro lado, atraídas pelo zunzum, cabeças surgem nas janelas e figuras assomam às portas. Espantam-se com a visão. Ela, muito branca em seu vestido igualmente branco, a cauda arrastando na areia, cravada de poeira e gravetos. Ele, um preto atlético, garboso em sua farda de gala branca de cabo da Marinha do Brasil. Alguns mais curiosos se apeiam das calçadas e os acompanham à retaguarda. Meninos empinando papagaios se juntam ao cortejo. Dois soldados passavam, resolvem ir atrás, ver o que acontecia. Dois ou três bêbados se juntam ao grupo. Da procissão erguem-se num só rumor os sussurros das pessoas especulando sobre a cena inusitada:

− O que é isso?

− Será mesmo um casamento?

− Aquela não é a filha do barbeiro?

− Noiva branca com noivo preto?!

– Vai ver que é coisa de teatro.

– Vamos ver no que vai dar…

O burburinho forma uma trilha sonora grave, ponteada pelos agudos de uma ou outra risada mais alta.

Após uns 15 minutos de caminhada, os noivos estacam diante de uma casa comum, numa esquina. A pequena multidão silencia. O mistério vai ser resolvido? No silêncio repentino da tarde domingueira, distingue-se, nítida, a voz da noiva, firme apesar de um leve tremido inicial:

– Pai… Sou eu, Tereza. Vim pedir a sua bênção.

Silêncio. Ela repete a fala, um pouco mais alto. Instantes depois, a porta se abre e surge uma mulher, Izabel — madrasta da noiva. Ela olha fixamente para Tereza, relanceia o olhar pelo noivo e encara a multidão atrás. Dá meia volta, e entra, fechando a porta atrás de si.

Izabel vai até a rede onde o marido dormia a sesta, acorda-o e diz-lhe algo. O homem faz que não com a cabeça e continua deitado. A mulher repete o gesto e ele continua obstinado. Ela levanta um pouco a voz e diz com firmeza:

– Arreda daí, Zé Pedro. Ela é sua filha. Onde já se viu um pai negar a bênção a uma filha? Olha que Deus castiga.

Zé Pedro por fim levanta, caminha devagar e abre a porta da rua.

O ajuntamento de curiosos cessa de pronto os cochichos. Os noivos, Tereza Fernandes e cabo Júlio Ribeiro da Silva, que estavam com a vista baixa, aguardando, levantam os olhos. O barbeiro José Pedro Fernandes olha a cena e por um instante passam por sua cabeça o dia em que soube do namoro da filha caçula e rebelde com o marinheiro negro, a proibição terminante que ele impôs, a desobediência de Tereza, a fuga de casa e agora essa reaparição extemporânea, chamando a atenção do povo.

Pai e filha se encaram sob o sol flamejante. Ela repete:

– Pai, vim pedir a sua bênção.

O velho nem tão velho olha unicamente para a filha, como se o noivo não existisse, um olhar com o cansaço do mundo, e fala, baixinho, mas com palavras audíveis como se fossem gritadas:

– Se é isso que você quer, está abençoada.

Entrou de volta à casa e fechou a porta. Os noivos, após uma breve hesitação, seguiram seu destino. A pequena multidão, frustrada com o desfecho pacífico, se dispersou, e as pessoas retornam às casas, conversando sobre o insólito acontecimento.

O pai da noiva fora contra o casamento porque o noivo era negro, pobre e chegado a uma birita. Tereza e o cabo Júlio (que seria reformado no posto de tenente) foram morar no Rio de Janeiro, para onde ele foi transferido e onde nasceram seus três filhos — Edson, Francisco e Sebastião — e viveriam uma relação intensa, sob o signo da paixão, com as idas e vindas desse tipo de união. O gesto de Tereza — quase menina determinada e corajosa o suficiente para enfrentar toda sorte de preconceito — tinha um significado de desafio — pelo inusitado da situação e risco de uma negativa — e, ao mesmo tempo, de dever filial, de cumprimento de um rito importantíssimo em termos sociais e religiosos, a bênção paterna.

A cena fora assistida por uma pequena observadora: uma menina de sete anos que, da janela de uma casa a poucos metros de onde pai e noiva travaram o diálogo dramático, acompanhou tudo com as pupilas dilatadas de espanto infantil. Chamava-se Maria Salete e assomou à janela ao ouvir o rumor do cortejo no domingo modorrento da rua modesta. Ao reconhecer os personagens, gritou para dentro de casa:

– Mãe, vem ver. É tia Tereza!

Luzia largou o que fazia na cozinha e correu à janela. Então viu a irmã, vestida de noiva, buquê já meio murcho na mão, as faces coradas, parada à porta da casa de Zé Pedro, quase ao lado. Viu o cabo Júlio com a branca farda de gala da Marinha que realçava sua negritude, imóvel e suado. Viu o pai surgir, muito sério, ligeiramente pálido. Rodeando os três, a aglomeração de curiosos, a princípio buliçosa, quedar-se imóvel e silenciosa, durante o curto diálogo. De cá, em meio ao sólido silêncio, deu pra Luzia ouvir o pedido de bênção de Tereza e a resposta do pai, aliviando seu coração.

Na sala, atrás de ambas, o bebê Tarcísio dormia placidamente.

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Jornalista e escritor. Só sei que nada sei (Sócrates), mas desconfio de muita coisa (Riobaldo Tatarana).

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