Bolsonaro e a tentação autoritária

BLOGUE DE HOMERO FONSECA
3 min readFeb 6, 2023

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Durante os quatro anos do governo Bolsonaro vivemos sob a síndrome de uma “democracia polarizada”. E sobrevivemos por pouco.

Bolsonaro: tentação totalitária mobilizou milhões de pessoas (Montagem sobre foto de Eraldo Peres /AP Photo)

Por Luciano Oliveira[*]

Foi, sem dúvida alguma, uma “democracia polarizada” [conforme o filósofo Claude Lefort]. Uma divisa que apareceu no 7 de Setembro de 2021 entre os apoiadores do presidente em manifestações claramente golpistas — “Eu autorizo!” — é uma boa ilustração da hostilidade dos adeptos da democracia polarizada às instituições da democracia formal e do próprio estado de direito. Mas, para mim, importa destacar que, apesar desse plebiscitarismo típico das democracias polarizadas, entre nós conseguiu-se por um dique às pretensões autoritárias do presidente Bolsonaro pela atuação dos outros atores em jogo, notadamente o Poder Judiciário, certamente, mas também parte relevante da imprensa e da comunidade científica. Aqui, a vontade do presidente Bolsonaro — ou seja, o poder — não conseguiu prevalecer contra o saber e a lei. Darei, em seguida, dois exemplos, ambos referidos à questão da pandemia da Covid e, respectivamente, dizendo respeito a uma e outra instâncias.

A instância do saber: quando, depois da queda do ministro Henrique Mandetta e da nomeação do general (com jeito de sargentão da revista Recruta Zero) Pazuello para o Ministério da Saúde, o governo tentou tratar os dados referentes à pandemia de modo a minimizar sua gravidade, formou-se um “consórcio de imprensa” que passou a divulgar dados independentemente do poder. Até hoje, é a esses dados que as pessoas se dirigem para saber a quantas anda o vírus entre nós.

A instância da lei. Quando, alguns meses depois de instalada a pandemia, ficou evidente que a estratégia da União era, como diria Michel Foucault, “deixar morrer” para que pudéssemos chegar à chamada imunidade de rebanho, o STF decidiu que os outros entes federativos, Estados e Municípios, tinham competência concorrente para legislar sobre a matéria, liberando prefeitos e governadores (que viam pessoas morrendo em corredores de hospitais superlotados, enquanto o presidente tentava administrar cloroquina às emas do Alvorada) para assumir tarefas independentemente do poder. Por essas e outras é que, malgrado tudo, pode-se considerar que a sociedade brasileira permaneceu democrática durante o quadriênio tenebroso do presidente Bolsonaro, porque, voltando a usar um termo lefortiano [referência a Claude Lefort, filósofo francês], ela se mostrou “indomesticável”.

Isso não significa dizer que não corremos perigo — que, aliás, continua nos rondando, como prova essa tentativa de golpe no dia 8 de janeiro último, onde uma malta aparentemente constituída em sua maioria por uma massa de manobra de idiotas úteis tentou tomar de assalto a Praça dos Três Poderes. É uma turba herdeira dos gritos de “Eu autorizo!” de 2021. Mas o quê?

Pensando livremente em alguns dos feitos mais notáveis (utilizando o termo no sentido literal daquilo que mais se nota) do então governo Bolsonaro, na época me perguntei a que se referia essa “autorização”: liberar irrestritamente as armas de fogo? Prender comunistas? Matar bandidos? Privatizar as estatais? Incentivar a devastação ambiental? Escrachar o movimento LGBT? Cooptar militares oferecendo-lhes “boquinhas”? Livrar a cara da “república das rachadinhas”? Continuar a desacreditar a eficácia das medidas sanitárias contra a Covid? Tudo sempre me pareceu muito insensato e confuso. Tanto mais que o ultraliberalismo de Guedes sempre foi impopular, o próprio Bolsonaro nunca a ele aderiu, e não resistiu à gastança que foi necessário promover na tentativa de se reeleger. Pensando bem, a única política pública de Bolsonaro que deu certo foi a do liberô geral das armas de fogo no país, medida que nunca contou com o apoio do contingente eleitoral evangélico, o seu forte. De um ponto de vista simbólico, o nosso equivalente da “raça ariana” no caso do nazismo e da “classe proletária” no caso comunismo foi (e continua sendo) uma vaga noção de “cidadãos de bem”! Mas, apesar disso tudo (ou seria graças a isso tudo?), o candidato Bolsonaro, com um “programa” desses, perdeu as eleições de 2022 por menos de 2% do eleitorado… Foi por pouco. Mas é isso. Como Lefort sempre advertiu, é próprio dos regimes democráticos serem permanentemente postos à prova pela “tentação totalitária. Parodiando Guimarães Rosa, viver em democracia é muito perigoso!

[*] Luciano Oliveira é professor, advogado e sociólogo. Este é um trecho de entrevista a João Rego, na revista eletrônica Será?, de 3 de fevereiro de 2023. Íntegra está aqui: Conversando sobre a democracia em Claude Lefort | Revista Será? Penso, logo, duvido. (revistasera.info)

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Jornalista e escritor. Só sei que nada sei (Sócrates), mas desconfio de muita coisa (Riobaldo Tatarana).

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