Asa Branca, canção do exílio
Nordestina, brasileira, universal. A icônica canção de Luís Gonzaga numa versão africana arrepiante.
Quando tinha 14 anos, Luiz Gonzaga passou a acompanhar o pai, o sanfoneiro Januário José dos Santos, nas tocatas noite a dentro, Sertão afora. “Asa Branca” era uma canção folclórica, entoada pelos negros apanhadores de algodão: uma típica cantiga de trabalho, cuja origem se perde nas profundezas do tempo. Januário e outros artistas a tocavam em seus foles de oito baixo, variando os versos básicos a cada nova performance: “Asa Branca foi-se embora / Bateu asas do Sertão / Larará não chore não”… Gonzaga fez, depois, uma apropriação/reelaboração daquele tema popular, prática comum inclusive na música erudita: Wagner, Chopin, Bela Bartok e Villa-Lobos, entre muitos outros fizeram o mesmo.
Corta para o Rio de Janeiro, 1947. O menino magrelo de Exu era agora homem feito e começava a carreira artística, tateando o mercado. Ele propõe ao parceiro Humberto Teixeira gravar “Asa Branca” — a “cantiga do eito”, como lhe chamou –, meio hesitante porque era uma música muito lenta para o gosto do público. Humberto completou a letra e Luiz fez ajustes na melodia. Fiel ao espírito queixoso do original, essa versão resultou numa toada quase lúgubre. Tanto que os músicos do acompanhamento na gravadora RCA fizeram gozação: “parece cantiga de cego”. Somente cinco anos depois, em 1952, Gonzagão gravou a icônica versão definitiva, em ritmo de baião. Costuma ser apresentada como “o hino do Nordeste”.
Mas ela é mais que isso. Partindo da aldeia, ela alcançou o universal, provando o enunciado de Tolstói: embora retratando uma realidade regional — as secas periódicas características do semiárido nordestino –, é um mergulho na alma dos que, porque qualquer motivo — acidente natural, dramas sociais, conflagrações políticas — são obrigados a se desterrar, sofrendo de saudade e ansiando por voltar. Uma nova canção do exílio, um tema universal. Desse ponto de vista, a seca é acidental: o verdadeiro leit motif da canção é o exílio. Caetano Veloso compreendeu isso quando, em 1971, morando em Londres depois de haver sido preso por dois meses, juntamente com Gilberto Gil, em plena ditadura militar, fez uma regravação antológica: mais lenta, mais triste, metaforizando sua condição de exilado político. E mesmo a versão mais mimética de Luiz Gonzaga chegou a ser censurada naqueles anos de chumbo.
Como canção do exílio, “Asa Branca” circula pelo mundo, transculturada em inglês, chinês, japonês, coreano, turco e no dialeto pulaar, do Senegal, em que ganhou a interpretação belíssica do cantor Ameth Male, tematizando a migração do campo para a cidade. Participam ainda os músicos Jean Pierre Senghor (arranjo e teclados), Aliou Guissé (percussão), Jefferson Gonçalves (gaita), Kleber Dias (bandolim), Siba Veloso (rabeca). O clipe está inserido no documentário Dakar-Recife, direção de Nilton Pereira, 2012.
Confiram aqui: www.youtube.com/watch?v=XxIeNT1lA-s
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REFERÊNCIAS
Dominique Dreyfus. Vida do viajante: a saga de Luiz Gonzaga. São Paulo: Editora 34, 1997.
“Os voos da Asa Branca: tradução e transculturação do baião brasileiro” — Marly D’Amaro Blasques Tooge. — TradTerm, revista da USP, 25, 2015. https://www.revistas.usp.br/tradterm/article/view/103245
“Asa Branca” no tempo e na voz de Caetano: a ditadura militar e o exílio como lugares de escuta” — Pedro Paulo Salles (USP) — Revista Eutomia, 25, 2019. https://periodicos.ufpe.br/revistas/EUTOMIA/article/view/244652