Adeus, camarada
Fernando Monteiro, que se despediu de nós em fevereiro, para além do grande escritor, era um interlocutor precioso.
Ele era um beduíno sisudo, atravessando as areias do deserto da vida literária montado num camelo chamado Solidão. Tinha o sentimento trágico da vida, o que explica a quase reclusão em que vivia. Um solitário existencial: avesso às patotas, não desperdiçava tempo com boemias e era esquivo aos gregarismos defensivos. Cultivava uma imagem pública de ranzinza, embora na intimidade fosse afável, em família um pai e marido amoroso, disponível para os amigos e generoso com os iniciantes. Questionador por temperamento, nos debates, entrevistas e aparições públicas suas falas incisivas perturbavam os incautos em suas zonas de conforto. Tudo isso com a ênfase dos apaixonados, mas sem estridência nem performances.
Era um espécime raro: um homem sem concessões. Eu o invejava um pouco por isso. Já ele não conseguia ocultar uma gota de amargura acrescentada àquele vasto sentimento trágico da vida: autor de uma sólida obra multifacetada (poesia, cinema, romance, conto, ensaio, teatro), pelo fato de se situar fora das caixinhas, não tinha o reconhecimento correspondente e almejado por todo artista, embora tenha conquistado alguns prêmios como cineasta e escritor.
Apesar de sua figura reservada, quando ele “se despediu de tudo” — no dizer do professor e crítico Eduardo César Maia — não faltaram registros elogiosos e depoimentos comovidos. O também escritor Sidney Rocha anotou: “O Brasil tem feito silêncio à sua obra porque o tem feito também à literatura, à poesia e ao cinema aos quais Fernando Monteiro era filiado: à literatura, e não à vida literária; à poesia, e não à tolice de de versejadores; ao cinema e não à platitude dos filmes”. E observou: “Para ele, o mundo havia perdido certa graça. Mas retirava disso arte, linguagem, revolta, essas ferramentas dos grandes artistas, para quem a vida, como o mundo, é só um detalhe”.
Sem ser um autor de leitura fácil (não fazia concessões, lembremo-nos), ele estava longe de se encaramujar num hermetismo estéril. Seus livros exigem dos leitores um mínimo de familiaridade com o código literário, daí não aspirarem à condição de best-sellers. A propósito, era um ferrenho crítico da indústria cultural e seus produtos nivelados para agradar o grande público, ocasional e volúvel.
O CINEASTA
Conheci Fernando em meados dos anos 1970 no Recife: ele, cineasta; eu, jornalista. Nessa década, ele produziu e dirigiu mais de uma dezena de documentários de curta-metragem, entre os quais: Visão apocalíptica do radinho de pilha (1972), representante do Brasil no Festival de Guadalajara; esse filme, de título inesquecível, aborda o transístor como agente modificador de costumes no ambiente sertanejo nas últimas décadas do século 20. Outras produções foram Filme de percussão mercado adentro (1974), representante do Brasil no Festival de Karlovy-Vary (RDA); Brennand: Sumário da oficina pelo artista (Festival de Brasília, 1977), Saideira (1980), representante do Brasil no Festival de Varsóvia, Leilão sem pena (Prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Cinema de Aracaju, 1981), entre outros (todos em 35 mm).
Ele entrou no mundo do cinema antes de completar vinte anos, em 1968, quando participou das filmagens de A compadecida , de George Jonas, com um elenco estelar: Regina Duarte, Armando Bógus, Antônio Fagundes, Ary Toledo, Zózimo Bulbul. Dois jovens iniciaram suas artes cinematográficas no set em Brejo da Madre de Deus: Fernando, na equipe dos assistentes de direção Lúcio Lombardi e Rosa Passos, e Joca Souza Leão, nos quadros da produção chefiada por Plínio Pacheco. Cronista e publicitário aposentado, Joca Souza Leão lembra: “Ele era um rapaz extremamente reservado. Falava pouco e nos intervalos das filmagens ficava sempre num canto, o nariz enfiado num livro”. Terminado o trabalho, ele herdou uma câmera 35 mm e uns rolos de filme. Daí começou sua carreira de cineasta.
O POETA
Depois ele sumiu por uns tempos, creio que foi quando foi estudar cinema em Roma. Ao regressar, retomamos o contato, ele se mostra múltiplo ao passar do tempo. Na década de 1980, largou o cinema e se dedicou à poesia, sua maior paixão. Já em 1973 ele lançara Memória do mar sublevado , retornando à poesia em 1980, publicando, entre esse ano e 2018, oito livros de poemas, entre os quais Ecométrica , publicado por Massao Ohno, em 1983, que conquistou o prêmio nacional da UBE/Rio em 1984 e chegou às mãos espanholas do Camilo José Cela (Prêmio Nobel de Literatura 1989), que escreveu uma resenha consagradora, saudando o aparecimento de um poeta-inventor de expressão renovadora e classificando o livro como luminoso. As demais obras desse campo foram A interrogação dos dias (1984), Hiléiade (1984), Gerión e a Suméria (1997), Vi uma foto de Anna Akhmátova (2009), Mattinata (2012) e Museu da noite (2018).
Mattinata, uma coedição da Nephelibata (SC) e da Sol Negro (RN), é um livrinho com três poemas longos, o primeiro dos quais dá título à obra. Com tiragem limitada/numerada, essa obra-prima é uma espécie de elegia ao amor: o narrador está à janela de um quarto de hotel, enquanto na cama uma mulher dorme um sono abandonado. Melancólico, o homem reflete sobre o fim do caso, na noite anterior, tentando reconstituir a relação dos começos até as ruínas. De vez em quando, tira os olhos da cena penumbrada do interior para a clareza do mundo exterior, lá embaixo, onde pessoas comuns exercem a fervilhante vida comum, indiferentes ao drama dos (ex)amantes, num contraste absoluto, mas milagrosamente harmônico, como só pode ocorrer na poesia.
Numa entrevista ao jornalista Marcelo Abreu, na revista Continente, há menos de um ano, ele repetiu o surrado bordão dos autores malditos: “Escrevo poesia para mim mesmo”. Mas complementou com um achado pessoal: “Poesia pra mim é um vício”. Modo de dizer, sem pompa, sua vocação.
O ROMANCISTA
Na prosa de ficção, ele começou tardiamente em 1997 , com a publicação do aclamado romance Aspades , ETs , etc. acrescentando dois volumes de contos: Armada América (2003) e Contos estrangeiros (2017). Em 2013, foi o vencedor do primeiro Prêmio Pernambuco de Literatura, na Categoria Romance, com O Livro de Corintha.
Seu personagem principal era a própria Literatura, embalada num texto longo, com excesso de informações, derramando-se em arabescos, imagens insólitas, citações eruditas e elipses desafiadoras… Pena que ele não esteja vivo para curtir os elogios escancarados em seu obituário.
Em 2017, foi homenageado pela 21ª Bienal Internacional do Livro de Pernambuco. Então, se despediu da forma romance, lamentando o rebaixamento do nível dos leitores nos últimos tempos. Confessou não ter interesse em escrever para esse tipo de leitor.
O CRÍTICO DE ARTE
Fernando Monteiro também exerceu a crítica de arte: é autor do livro Brennand (premiado pela Funarte, em 1987), fez o filme Simetria terrível ou Mecânica de JC (sobre o pintor João Câmara), escreveu apresentações de exposições internacionais em Berlim e no Porto, atuou como jurado de salões de arte e desempenhou atividades de curador (galerias Espaço Vivo e Estúdio A), na década de 1990.
CONVERSAS
Há vários anos, conversávamos, num intervalo de alguns meses (que deveria ser mais breve!), sobre literatura, cinema, arte, filosofia e política. Quando nos encontrávamos, num café ou num evento literário, podíamos iniciar assim: “Como eu ia dizendo…”. Tínhamos afinidades intelectuais e algumas divergências estéticas: ele meio que idolatrava Thomas Edward Lawrence e admirava a antiga civilização egípcia. Eu nunca li Os sete pilares da sabedoria nem nada sei de Tutancâmon ou Nefertiti. Eu não compartilhava o entusiasmo dele com Crônica da casa assassinada , mas tínhamos a mesma opinião sobre As confissões de tio Gonzaga — obra-prima de Luís Jardim, apesar do título bisonho. Em nossas conversas, ele punha no pedestal Antonioni e Pasolini (eu prefiro Visconti e Fellini) e me apresentou Valerio Zurlini. Fiel à sua reclusão, ele nunca tomou a iniciativa. Mas quando eu ligava para indicar um café ou um restaurante, ele estava sempre pronto. E levava um dos seus mimos: um livro, um gibi, um cartaz — antigos — de sua coleção pessoal. Quando eu discordava de uma opinião dele, mesmo sobre seus temas mais caros, ele ouvia e respondia com um monossílabo neutro. O gladiador das ideias na arena pública era conciliador no trato pessoal. O diálogo era facilitado por uma característica raríssima em nosso meio: o cabra era desprovido do espírito de competição, sentimento perigoso capaz de estragar todo tipo de relacionamento (ao qual não sou totalmente imune, diga-se a bem da verdade).
Nos últimos tempos, ele parecia mais melancólico. A sensação de deslocamento sentida por todos os artistas e qualquer pessoa mais sensível vinha se acentuando diante da metamorfose pelo qual o mundo está a passar, saltando da era analógica para a digital, numa velocidade impossível de ser acompanhada por nossa geração. Não se trata de uma mera questão tecnológica. As mudanças afetam a forma de pensar e as sensibilidades. Várias vezes ouvi comentários seus sobre a vulgaridade avassaladora dos tempos atuais. Nós, os velhos, cada vez mais sentimos que não temos lugar nessa realidade que não é realidade.
P.S. A primeira versão deste texto saiu completamente deturpada. A burra Inteligência Artificial se deu ao desplante de fazer uma minuciosa revisão, trocando a seu bel prazer verbos, substantivos e adjetivos, geralmente por exemplos mais rasteiros, talvez com o objetivo de “facilitar” a leitura. Vade retrô, IA!
RETRÔ uma ova! Vade retro!